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Síndrome de hiperêmese por canabinoides: como diferenciar do vômito cíclico?
Vera Ângelo Andrade
A síndrome do vômito cíclico é um distúrbio funcional bastante conhecido e descrito desde o século XIX. Caracteriza-se por episódios recorrentes e intensos de vômitos afetando predominantemente crianças em idade escolar. Porém, o número de casos diagnosticados em jovens e adultos está aumentando progressivamente; embora sua incidência não seja conhecida no nosso meio. Fatores desencadeantes descritos na literatura são: enxaqueca, estresse psicológico, infecções, alimentos como queijo e chocolate e jejum por exemplo. Quando os episódios de vômitos incoercíveis surgem na gravidez, caracteriza-se a hiperemese gravídica. Recentemente temos observado número crescente de adolescentes com síndrome de vômitos incoercíveis relacionados ao uso de maconha. Vários pacientes têm o diagnóstico postergado, pelo tabu de se perguntar sobre uso de drogas ilícitas na anamnese.
Síndrome de Hiperêmese por Canabinoides
A síndrome de hiperêmese por canabinoides foi reportada pela primeira vez em 2004 por Allen et al, sendo caracterizada por episódios recorrentes e estereotipados de náusea e vômitos associados ao uso diário e crônico de cannabis.
Sua fisiopatologia envolve o Sistema Endocanabinoide, presente no Sistema Nervoso Central, com destaque para centro de controle de náuseas e vômitos no tronco cerebral, e no Sistema Nervoso Entérico. A ativação dos receptores canabinoides reduz náuseas e vômitos por mecanismos centrais e periféricos. Entretanto, o uso prolongado da cannabis (fitocanabinoide agonista dos receptores canabinoides), associado a fatores genéticos e estresse psicológico subjacente (transtorno de estresse pós-traumático, abuso físico e/ou sexual, ansiedade, depressão), induz tolerância e downregulation desses receptores, especialmente do receptor canabinoide 1 (CB1), e ativa o feedback negativo sobre a propriedade antiemética normal. Dessa forma, ocorre a desregulação das vias neurais centrais e mediadores neuroendócrinos, resultando em ataques periódicos de náusea e vômito. Esses sintomas melhoram com o banho quente, pois a água atua nos neuroreceptores aferentes termossensíveis, compensando a desregulação da termorregulação e diminuição da temperatura corporal central causada pela toxicidade da cannabis, além de normalizar a motilidade gastrointestinal e alterar a sinalização vagal. (Figura 1)
Figura 1. Mecanismo fisiopatológico da Síndrome de Hiperêmese por Canabinoides
Diagnóstico Clínico da Hiperêmese por Canabinoides
Clinicamente os vômitos são acompanhados de dor abdominal epigástrica com irradiação difusa e precedidos de náusea, anorexia e desconforto abdominal. Os episódios melhoram com banho quente e com a cessação do uso da cannabis e ocorrem, inicialmente, em intervalos de dias a semanas, que tendem a reduzir com o tempo se não for tratado. O curso clínico da síndrome pode ser dividido em três fases. (Figura 2)
Figura 2. Curso clínico da Síndrome de Hiperêmese por Canabinoides
O diagnóstico é exclusivamente clínico, sendo fundamental a investigação do uso crônico da cannabis seguindo os Critérios de Roma IV (Tabela 1).
Tabela 1. Critérios de Classificação de Roma IV
Nota: Os critérios devem estar presentes nos últimos 3 meses, sendo o início dos sintomas pelo menos 6 meses antes do diagnóstico.
Diagnóstico Complementar
Na maioria dos casos, os exames laboratoriais, radiográficos e endoscópicos são desnecessários. Os exames complementares geralmente são realizados no pronto-atendimento, visando realizar os diagnósticos diferenciais e identificar as possíveis complicações clínicas. Os testes laboratoriais iniciais devem incluir um hemograma completo, glicemia, perfil lipídico, enzimas pancreáticas e hepáticas, exame de urina, exame de toxicologia urinária e radiografias abdominais. Em pacientes do sexo feminino deve-se incluir teste de gravidez. As complicações clínicas associadas a essa síndrome incluem alcalose metabólica, hipocalemia, lesão renal aguda e lesão esofágica.
Os principais diagnósticos diferenciais a serem considerados diante do quadro agudo são: gastrite, doença do refluxo gastroesofágico, úlcera péptica, apendicite, diverticulite, volvo sigmoide, cólica biliar, pancreatite, nefrolitíase, infecção do trato urinário. Em pacientes do sexo feminino em idade reprodutiva, é incluída a gravidez ectópica e a torção ovariana. Em idosos, especialmente aqueles com hipertensão, as doenças cardiovasculares, como patologia aórtica e síndromes coronarianas podem se manifestar como dor abdominal, náuseas e vômitos.
Terapêutica
O principal objetivo terapêutico é a cessação do uso da maconha, sendo fundamental o acolhimento da equipe de saúde e do aconselhamento ao paciente.
Os banhos a altas temperaturas contribuem para a redução dos sintomas, já que a água quente pode conter os efeitos crônicos de estimulação dos receptores canabinoides no centro termorregulador hipotalâmico e promover efeitos antiemético. Em quadros agudos, administra-se benzodiazepínicos via parenteral, além de medidas suportivas de reidratação e administração de antieméticos, como a Ondansetrona.
Pode-se prescrever tricíclicos como Amitriptilina 25-150 mg/dia, para auxiliar na redução dos sintomas de abstinência (náuseas, vômitos, insônia, irritabilidade e ansiedade) e na manutenção dos resultados clínicos.O tratamento adjuvante com o uso de Haloperidol, por provável atuação nos receptores CB1, e creme tópico de capsaicina, por atuação no neuroreceptores aferentes termossensíveis, promove alívio dos sintomas em casos de náuseas e vômitos refratários aos antieméticos convencionalmente usados.
Concluímos que a síndrome de hiperêmese por canabinoides apresenta-se como vômito cíclico, porém já foi definida pelos Critérios de Roma IV como uma entidade patológica diversa. A investigação na história clínica do uso crônico da cannabis tem sido negligenciado, em especial nesse período de estresse da pandemia, retardando o diagnóstico.
Em conjunto com: Jordana Almeida Mesquita1 e Isabella Barreto de Souza Machado2
1 Acadêmica de Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais
Diretora de Pesquisa da Sociedade Brasileira de Ligas Acadêmicas do Aparelho Digestivo (SOBLAD)
Lattes: 4134333640641468
2 Acadêmica de Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais
Corpo de Apoio Científico da Sociedade de Acadêmicos de Medicina de Minas Gerais
(SAMMG) Lattes: 5732802318428135
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Produzido pela PEBMED em parceria com Vera Lucia Angelo Andrade.
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Vera Ângelo Andrade
Graduação em Medicina pela UFMG em 1989, Residência em Clínica Médica/Patologia Clínica pelo Hospital Sarah Kubistchek, Gastroenterologista pela Federação Brasileira de Gastroenterologia, Especialista em Doenças Funcionais e Manometria pelo Hospital Israelita Albert Einstein, Mestre e Doutora em Patologia pela UFMG,Sócia proprietária da Clínica Nuvem Medicina BH.